Pela manhã encontrei ainda seu corpo em minha cama, debaixo dos lençóis estava quente e macia, de costas para mim. O seu cabelo pendia-lhe da cabeça suavemente até encontrar os travesseiros e ali escorrer um pouco mais. O seu cheiro impregnava os lençóis, a cama, os travesseiros, meu corpo. Minha mente embriagada que lhe vê deitada e crê vividamente que tudo lhe é estranho e sonho não me surpreende. Alheio a uma realidade que nunca poderei tocar, mas afago seu corpo quente. Envolvo-lhe em meus braços, meu peito em suas costas, perto. O calor de nossos espíritos, ligados naquela manhã debaixo dos lençóis, nos escondia do frio que entrava pela janela escancarada. Era assim que gostávamos de deixar, mania. Todas as noites ela vinha me visitar e nunca passamos mais do que seis horas e meia juntos. Sem abrir os olhos, se aconchega em minha redoma de carinho e ainda tão macia, tão doce, me deseja um bom dia. Retribuo-lhe com um beijo na nuca, o cheiro me entra pelos poros, capitoso. Era ali minha zona de conforto, eu poderia ficar deitado, envolvendo-a em meus braços até que eles caíssem podres. Minha vida era aquele instante e nada mais. Os meus sonhos se resumiam a um nome, eu era o que sentia ali, eu era alívio, aconchego e consolação.
Nos levantamos então, depois de quase uma hora, sem nos vestir, conversamos enquanto aproveitávamos o nosso café da manhã: duas xícaras de espresso, dois cigarros para cada um. Voltamos para a cama ainda mais um pouco, trocamos algumas carícias e disse a ela juras de amor. Eu vou estar do seu lado. Sempre. Preparei tudo isso para você, tudo o que me pedir eu vou lhe atender, estou aqui por você e nada mais. Ela sorriu e me abraçou, disse que tudo isso era lindo, mas que tinha que ir agora.
Aperto no peito, nó na garganta, peso no estômago, ansiedade, todas as minhas manias vieram a tona. Tive que lavar as mãos imediatamente depois de ela sair. Vesti minhas roupas numa fúria pudorosa de mil e três bons cristãos, abri todas as janelas e espantei o cheiro do cigarro, arrumei tudo, cada centímetro e canto daquele apartamento. Tudo estava métrico e impecável. Lavei minhas mãos mais uma vez ainda. Desinfetei as mesas, cadeiras e todos os talheres. Um a um, sem pressa. Duas horas e meia se passaram e parado no meio da sala pude ver o quarto e a cama, agora fria, em que nos deitávamos tempos atrás. Tudo estava ali ainda, em mim, nada tinha passado: o aperto no peito, o nó na garganta, a malévola ansiedade que tomava conta dos meus dedos os fazendo se debater contra minhas pernas. O cheiro. Aquela força sublime que ela emanava por toda parte ainda tomava conta do ambiente e do meu espírito, aquele perfume capitoso. Nada que eu fizesse poderia tirar de mim aquelas marcas. Estava embriagado e meu corpo eternamente pronunciado. Perdia agora mais uma parte da minha alegria. Tinha-se ido com ela, como com todas as outras. Eu sou o posto de passagem, o porto mercantil onde jamais ninguém se estaciona. Abastecem-se em meus sorrisos e palavras doces de quem sente nos ossos o calor e se vão. Hei de ser assim ainda muito mais? Quero não me importar, quero esfriar minhas expectativas e calar os meus suspiros.
Que sejam de outros agora, estão melhores assim. Preparei-lhes bem, fortaleci seus espíritos e tornei-as mulheres altivas, altaneiras, briosas. Eu as faço demasiado bem, as torno independentes de mim. Que outros toquem agora os corpos que preparei ao custo de pedaços de alma, que desfrute outrem das palavras e ensinos que incuti em cada uma delas, que jamais se deixem novamente esmorecer por figuras paternas transfiguradas em complexos de electra mal resolvidos. Sejam agora, todas elas, águias, porque eu desaprendi a voar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário